Jorge Coli
A Origem do Mundo:
Rituais litúrgicos
O quadro de Gustave Courbet,
"A Origem do Mundo", de 1866, só foi exposto ao público em 1991. Até
então, um número ínfimo de pessoas vira o original, que por isso guardava uma
aura de mistério mítico. Seu último proprietário foi Jacques Lacan, dono de uma
coleção importante de arte. "A Origem do Mundo", porém, não era
mostrada: Lacan conservava a tela numa edícula, recoberta por outra tela, de
André Masson. O psicanalista a exibia somente a alguns eleitos.
James
Lord e Dora Maar presenciaram uma dessas cerimônias. Sua descrição é
reveladora: atitude grave ("A atmosfera podia ser tudo, menos
alegre"); conversas em voz baixa, repetição da liturgia ("Depois do
almoço, acompanharam-nos até uma construção fora da casa, onde ficava o ateliê
de Lacan. Dora sussurrou: "Ele vai nos mostrar seu Courbet");
palavras sacramentais ("Agora, vou lhes mostrar algo de
extraordinário"); rito de exposição, quando o proprietário retira o
disfarce que cobre o quadro; enfim, resposta ritual do fiel ("Proferi as
exclamações admirativas esperadas").
RELIGIOSO
Há um caráter religioso em tudo
isso. É verdade que Courbet, ao eliminar a cabeça e os membros do modelo,
concentrando-se no sexo, evitou tudo o que não fosse pura exposição.
Transformou assim o espectador em puro contemplador, ou em contemplador puro. A
imagem se impõe como evidência e permite a sacralização por sua essencialidade.
O vínculo entre obsceno e sagrado
se tece graças aos laços entre os iniciados: é uma cerimônia religiosa, no
sentido mais etimológico de "religare" (unir). Ora, exposição (de
qualquer obscenidade) pressupõe a cumplicidade entre quem expõe e quem vê.
Há evidentes pontos de comparação
entre o quadro de Courbet e uma foto contemporânea de Gouin: a inclinação da
pose, a abertura das pernas. Se fosse reduzida ao sexo como a tela, teria, pelo
teor documental da fotografia, algo de clínico. Mas o rosto que figura ali, o
olhar fixo, a elegância afetada dos dedos na mão direita, transformam-na
bastante. Tal como está, é uma imagem a ser mostrada entre cavalheiros, ao
abrigo de olhares espúrios e, sobretudo, escondida de mulheres e de crianças.
O êxtase contemplativo cede lugar
ao voyeurismo canalha. Mas a comunidade de iniciados permanece. A pequena
fotografia viaja de bolso em bolso, é mostrada na palma da mão. O silêncio
sagrado da encantação medúsica vem substituído então por outra atitude
iniciativa: a risota cúmplice.
Há um ponto aqui: a diferença de
olhares. Nas noções de "contemplar" e "êxtase
contemplativo" pressuponho uma atenção involuntariamente muito focada,
silenciosa. É o que pode ser chamado de fascínio e adoração, repousando sobre
fé sincera e, em vários aspectos, respeitosa. Outro olhar, que se pode chamar
de "cumplicidade canalha", tem no riso, na piada, um sinal de conivência.
Há mais um ponto comum entre a
foto e o quadro: nenhum homem está presente. Eles são previstos como
espectadores, externos à ação erótica. A fenda oculta um mundo desejado e
sequestrado, secreto e promissor, mas se mantém sob autoridade feminina, seja
de modo "ôntico", seja em modo de comércio. Revela-se como posse
íntima das mulheres, velando os mistérios que não podem ser vistos, apenas
intuídos pelo prazer imaginário dos homens.
Um quadro dos anos de 1820 pode
nos fazer avançar na reflexão. É atribuído ao círculo de Achille Devéria
(1800-57), talvez seja mesmo de sua mão. Uma jovem, quase adolescente, mostra o
traseiro.
A perna esquerda, apoiada num
tamborete, dobra-se, de modo a afastar as coxas e a revelar a vulva, desprovida
de pilosidade. O rosto se volta para o espectador. Tal iconografia é rara. O
tema calipígio é frequente nas artes, mas aqui a situação, a pose, a visão
simultânea das nádegas e da vulva, ao contrário, é incomum.
A tela pequenina impõe uma
análise diversa das feitas a Courbet e Gouin. O artista não exibe frontalmente
a vulva. Põe em evidência a beleza das nádegas, pintadas com carinho. O olhar é
atraído primeiro por elas. Descobre-se depois o sexo na penumbra do
entrepernas. Não se vê o homem que, supomos, deve usufruir da penetração, mas
ele está presente, assinalado pela cartola sobre a cadeira, no primeiro plano.
Se no quadro de Velásquez o
contemplador ocupa o lugar do rei, para evocar o conhecido texto de Michel
Foucault, aqui ele ocupa o do fodedor. A seminudez da jovem indica que a
relação é fugidia, apressada. Afora a cartola, não se veem roupas masculinas: o
homem deve estar vestido.
FOTO
Não foi difícil encontrar na
internet uma foto obscena que tivesse analogia com o quadro em questão. Sem
contar as vestimentas e a pose, que acentua a abertura e a visibilidade da
vulva e do ânus, Megan Bubble Butt, como vem denominada, mostra o traseiro (desmedidamente
ampliado pela lente do fotógrafo). Como a jovem de 1825, volta para o
espectador os olhos amendoados.
Seria possível, num primeiro
momento, que o caráter elaborado da tela e o aparente imediatismo da foto
servissem como critério para estabelecer uma distinção entre "arte" e
"pornografia". Mas não.
A tela certamente entraria na
categoria pornográfica pelos critérios do século 19. O tempo a transformou,
porém, e hoje ela poderia ser exposta a qualquer público. Ora, a foto de Megan,
disponível para qualquer olhar na internet, poderia integrar a obra de um
artista contemporâneo.
Minha convicção é que a precisão
conceitual neste caso não é de rigor. O importante é a fecundidade do processo
comparativo: uma imagem ao lado da outra permite aguçar a inteligência do
olhar, e a melhor intuição e compreensão dos fenômenos culturais e estéticos
que elas envolvem.
MANET
Ponhamos o pequeno quadro de
Devéria em paralelo com "Olympia" (1863), obra de Manet. O ponto em
comum é que, como em tantas obras do artista, o espectador está pressuposto:
como em Velásquez, como tantas vezes no barroco, quem olha se incorpora à obra.
No entanto, com
"Olympia", não se trata do "lugar do rei", nem do
"lugar do fodedor". Trata-se do "lugar do cliente". O sinal
de sua presença está no buquê de flores, no gato arrepiado diante do estranho,
no olhar do modelo, e, ainda, no gesto de sua mão esquerda.
É importante analisar esse gesto.
Ela tapa o púbis com a mão espalmada, de modo decidido. Gesto
"profissional". O cliente chegou, ela está nua; expõe-se, mas esconde
o ponto mais desejado, suprema moeda de negociação.
COFRINHO
A fenda de Danae transformou-se
em cofrinho quando ela foi penetrada pelas moedas de Zeus. Com a mão, Olympia
bloqueia (temporariamente) a sua. O olhar concupiscente devora promessas, mas
tem seu limite: o da passagem que dá acesso à moeda metafórica, ao pênis real.
O pênis ereto figura o prazer masculino, externo, exposto. Já a interioridade
feminina mantém-se inacessível à representação. Nenhuma das vulvas escancaradas
da arte, ou infinitas na fotografia pornográfica, dá conta da representação.
Como o desejo feminino é interno,
sua porta de entrada é ao mesmo tempo barreira visual. Sua exibição é o
atestado do prazer invisível, dos mistérios invisíveis.
Da origem do mundo à origem do
fogo, o ventre é o lugar invisível dos mistérios e dos prazeres. A contemplação
do sexo feminino pressupõe e impõe esses mistérios. Seria mesmo necessário
tratar a pornografia como um conceito? Há uma distinção convencional entre
erotismo e pornografia que atribui à natureza da fotografia os males da
pornografia contemporânea.
Barthes o expôs em "A Câmara
Clara": "A foto me induz a distinguir o desejo pesado, o da
pornografia, do desejo leve, do desejo bom, o do erotismo". Parafraseando
Alain Robbe-Grillet, o desejo pesado é naturalmente o dos outros. O nosso é
sempre o bom.
Pornografia é menos um conceito
que um insulto, um preconceito. No mundo interminável dos desejos intensos que
é a internet, as imagens licenciosas são infinitas. Trata-se de desejos
inefáveis, intangíveis, "virtuais" (do latim "virtus", que
também dá origem, numa gênese paradoxal, à palavra virtude), ou seja, existindo
apenas em potência e não em ato, como sonho e irrealidade. Imagens que
alimentam, e se alimentam, dos desejos humanos. Exatamente como as obras de
arte.
Se tivermos mesmo que situar a
pornografia num campo conceitual, este deve se localizar na moral, e não na
estética ou na arte. Na estética, na arte, grandes ou pequenas obras,
"altas", ou "baixas", nobres ou vulgares, podem
corresponder entre si, e iluminarem-se mutuamente.