ARTHUR SCHOPENHAUER
“A coisa-em-si”, de
Kant e “a Idéia”, de Platão
A
doutrina de Kant é, no essencial, o seguinte: “Espaço, tempo e causalidade não
são determinações da coisa-em-si, mas pertencem somente ao seu fenômeno, pois
eles não passam de meras formas do nosso conhecimento. Ora, como toda
pluralidade, nascer e perecer só são possíveis por meio do tempo, espaço e
causalidade; segue-se daí que aqueles cabem exclusivamente ao fenômeno, de modo
algum à coisa-em-si. Todavia, como nosso conhecimento é condicionado por
aquelas formas, a experiência inteira é apenas conhecimento do fenômeno, não da
coisa-em-si. Mesmo ao nosso próprio eu se aplica o que foi dito, e nós o
conhecemos somente como fenômeno, não segundo o que possa ser em si”.
Platão,
por sua vez, diz algo assim: “As coisas deste mundo, que nossos sentidos
percebem, não possuem nenhum ser verdadeiro: elas sempre vêm-a-se, mas nunca são. Têm apenas um ser relativo;
todas juntas somente o são em e através de sua relação uma para com a outra.
Pode-se, por conseguinte, igualmente nomear seu inteiro ser-aí também não ser.
Em consequência, elas também não são objeto de uma experiência propriamente
dita, pois tal experiência só pode haver daquilo que é em e para si, sempre da
mesma maneira. As coisas deste mundo, ao contrário, são apenas objeto de uma
opinião ocasionada pela sensação, assunção baseada em percepção não comprovada
conceitualmente (Platão, Timeu, 28a).
Enquanto nos limitamos à sua percepção, assemelhamo-nos a homens que estariam
sentados presos numa caverna escura, tão bem atados que nãopoderiam girar a
cabeça, de modo que nada veriam a não ser as sombras projetadas na parede à sua
frente de coisas reais que seriam carregadas entre eles e um fogo ardente atrás
deles; sim, cada um veria inclusive aos outros e a si mesmo apenas como sombra
na parede à frente. Sua sabedoria, então, consistiria em predizer aquela
sucessão de sombras, apreendida da experiência. Ao contrário, só as imagens
arquetípicas reais daquelas sombras, as Idéias eternas, formas arquetípicas de
todas as coisas, é que podem ser ditas verdadeiras, pois elas sempre são, entretanto nunca vêm-a-ser nem
perecem. A elas não convém pluralidade
alguma,pois todas, conforme sua essência, são unas, na medida em que cada
uma delas é a imagem arquetípica, cujas cópias ou sombras são todas as coisas
isoladas e efêmeras da mesma espécie e de igual nome. A elas também não convém nascer e perecer algum, nem mudança;
pois são verdadeiramente, nunca vindo-a-ser nem sucumbindo como suas cópias que
desvanecem (nessas duas determinações negativas, entretanto, está
necessariamente contido como pressuposto que tempo, espaço e causalidade não
possuem significação alguma nem validade para as Idéias; elas não existem
neles). Apenas delas, por conseguinte, há um conhecimento propriamente dito,
pois o objeto de tal conhecimento só pode ser o que sempre é e em qualquer
consideração, portanto o que é em si mesmo e imutável, não o que é, mas depois
também não é, dependendo de como o vê”. Eis a doutrina de Platão.
Vê-se nitidamente que o sentido
íntimo das duas doutrinas é exatamente o mesmo. Ambas declaram o mundo visível,
o mundo da experiência, um mero fenômeno, que em si é nulo, e possui
significação e realidade emprestada apenas mediante o que nele se expressa. Este que nele se expressa é, portanto, o oposto
do fenômeno: para Kant, a coisa-em-si; para Platão, a Idéia. Apenas a estas
conferem ambos o ser verdadeiro, recusam-lhes por completo, todavia, todas as
formas de fenômeno, inclusive a mais simples e universal.
Para que isso fique completamente
claro e corrente, quero explicitá-lo com um exemplo. Pensemos num cavalo diante
de nós. Então perguntemos: o que é isso?
Platão
diria: “Esse animal não tem nenhuma existência verdadeira, mas apenas uma
aparente, um constante vir-a-ser, uma existência relativa, que tanto se pode
chamar de não-ser quanto de ser. Verdadeiramente é apenas a Idéia, que se
estampa naquele cavalo, ou o cavalo em si mesmo, que não depende de nada, mas é
em e para si, nunca veio a ser, nunca se extinguindo, mas sempre da mesma
maneira. Enquanto reconhecemos nesse cavalo sua Idéia, é por completo
indiferente e sem importância se temos aqui e agora diante de nós esse cavalo
ou seu ancestral que viveu há milhares de anos; também é indiferente se ele se
encontra aqui ou num lugar distante, se ele se oferece desta ou daquela
maneira, nesta ou naquela posição, ação, ou se, finalmente, ele é esse ou algum
outro cavalo. Todas essas coisas são nulas, e tais diferenças significam algo
apenas em relação ao fenômeno. Unicamente a Idéia do cavalo possui ser
verdadeiro e é objeto de conhecimento real. Assim diz Platão.
Agora
deixemos Kant falar: “Esse cavalo é
um fenômeno no tempo, no espaço e na causalidade, que, por sua vez, são as
condições a priori completas da
experiência possível, presentes em nossa faculdade de conhecimento, não
determinações da coisa-em-si.
Por consequência, esse cavalo, tal qual o percebemos neste determinado tempo,
neste dado lugar, como vindo-a-ser no encadeamento da experiência – isto é, na
cadeia de causas e efeitos, e em virtude disso necessariamente indivíduo que
perece -, não é coisa-em-si, mas um fenômeno valido apenas em relação ao nosso
conhecimento. Para saber o que ele pode ser em si, por conseguinte independente
de todas as determinações encontradas no tempo, no espaço e na causalidade,
seria preciso outro modo de conhecimento além daquele que unicamente é possível
pelos sentidos e pelo entendimento”.
Transcrito
por Jardel Dias Cavalcanti de: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Tradução
e notas de Jair Barbosa.São Paulo: Ed. da Unesp, 2003. P.31-37.