porteiras e fogões
Por RONALD POLITO
Por RONALD POLITO
1.
Há mais de uma década, Paulo
Sérgio Talarico tem frequentado a tópica por excelência recorrente das
artes-plásticas em Minas Gerais: a representação de suas montanhas, fazendas,
campos e cidades do interior, reais ou não, em paisagens rurais ou cenas urbanas
que remetem a lugares reconhecíveis ou puramente imaginados. Se essas
representações apontam uma leitura particular da tópica, o que aqui não será
abordado, elas de qualquer modo se balizam pelos elementos consagrados na área.
Não
é o caso de duas séries que têm se firmado no campo de suas pinturas. Refiro-me
aos quadros de pequenas dimensões que nos apresentam, de um lado, porteiras em
estradas rurais e, de outro, fogões de lenha. Uma opção por isolar uma parte
capaz de representar o todo. A força de uma tentativa desse tipo será tanto
maior quanto mais intensa for sua capacidade de magnetizar, atrair para si os
diversos atributos do todo a que quer se referir. É esse, me parece, o caso
dessas duas figurações: os fogões e as porteiras.
Talarico
está pisando em terreno novo. Desconheço, nas representações e tópicas sobre
Minas Gerais, obras de artes-plásticas que nos apresentem esses elementos
isolados de seus contextos. Trata-se, assim, de um movimento mais imprevisível,
de invenção de novos recortes capazes de apresentar do outro modo esse
imaginário rural e da vida no interior agrário.
Dizer
que fogões e porteiras remetem a Minas Gerais é, no fundo, um reducionismo,
aqui só compreensível por sabermos de dados biográficos do autor e pela
semelhança que as imagens guardam com objetos do mundo real e presentes nessa
parte do território brasileiro. Mas é possível, naturalmente, não se ater a
essa moldura e tomar essas figurações como representações de uma realidade mais
ampla, a do país. Ou mesmo de todos os países agrícolas e periféricos no
cortejo mundial, quando essas imagens alcançam latitudes antes impensadas.
2.
As porteiras ou cancelas são como
que uma conclusão lógica, uma redução ao mínimo, do que já vinha se
manifestando nas paisagens montanhosas do autor. Em diversas paisagens, bem
como nas landscapes (que são um
subconjunto dessa tópica), que nos apresentam especificamente recortes rurais e
semirrurais, tornou-se notória a presença de grandes porteiras em primeiro
plano que, geralmente, servem como moldura a partir da qual o espectador
descortina, por trás delas, a circunstância geralmente bucólica que resguardam.
Como moldura dentro da moldura, elas funcionam como lente de aumento, como
seleção e recorte privilegiador do que é mais importante a ser reconhecido. Diga-se,
ainda, que não são porteiras, por vezes de currais, eventualmente presentes em
representações de casas-grandes mineiras que incorporam seu entorno, pátios e
pomares. São porteiras de estradas de chão, demarcando limites de propriedades,
povoados, definindo território. E, aos poucos, elas foram se autonomizando até
que surgiram como o elemento a ser destacado.
Cercar,
dividir, resguardar, preservar: silenciosas e fechadas, essas porteiras servem
para barrar o observador inoportuno, o invasor do que deve se manter na privacidade.
Apenas uma grande casa à direita indica a ocupação humana, nenhum bicho,
nenhuma flor. Casa recolhida e preservada pelas montanhas e pelo céu que a
cercam. Montanhas e céu em profunda harmonia. Numa pintura que é também desenho
(principalmente dos repertórios dos quadrinhos) nos delineados e simula se aquarelar
nas vegetações, tipos de técnica e linguagem que o autor há décadas vem
transferindo para a tela. Essa opção sobrecarrega a cena com uma dimensão
infantil, lúdica, acentuando o que uma imagem pode conter de ilustração.
Este
é um tipo diferente de locus amoenus:
desprovido de fontes, de ninfas, do repertório usual, põe em seu lugar apenas
porteiras, montanhas, casinhas, o vocabulário reduzido aos naïf. E as dimensões pequenas dos trabalhos igualmente são
adequadas ao tema.
elementos mais
primários, capturado por um lirismo que lança mão dos rabiscos da infância. As
cores quentes, vivas, a superfície homogeneamente ensolarada, na maioria das imagens,
confirmam essa organização em torno do básico, por pouco
Sem título. Acrílica sobre louça, 20
cm/d. 2010. Coleção Henrique Teixeira.
Por
vezes, a orientação de cores é outra. Como no caso desse quadro em tons
terrosos, quase monocromático, como se citasse o sépia de certas fotografias
envelhecidas ou transmutasse em desbotamento o que o tempo fez com a pequena
vila apresentada num fim de tarde.
Sem título. Acrílica sobre cartão
reciclado, 30 x 20 cm. [2002]. Coleção Valéria Jucá.
A
vila repousa em absoluto silêncio, nenhum movimento. Nada está sendo ou será
construído aí, ela está pronta e acabada. E a porteira é sólida, três pranchas
largas em mourões pesados. O "mesmo" lugar recebeu nova apresentação,
agora se colorindo um pouco mais, mas o
tom de desolação, de vida parada, permanece intacto.
Sem título. Acrílica sobre cartão
reciclado, 40 x 30 cm. [2002].
Como
síntese da tópica, redução máxima, a tela seguinte é uma das melhores
realizações do conjunto, cuja meta parece ser o estado de contemplação onírica.
Nela apenas a porteira e a cerca indicam claramente a presença e a posse humana,
afora os pastos. E o pequeno monte à direita oculta, antes que a curva da
estrada suma, tudo o que nossa imaginação pode supor por trás dele, incluindo o
vazio. O local ameno guarda suas fraturas, seu desgaste. Mas a degradação se
encontra paralisada, o que permite a figuração amistosa, uma promessa de paz,
que aparentemente não nos pertence, ainda que possamos experimentá-la do lado
de cá porteira.
Sem título. Acrílica sobre tela, 40 x
20 cm. [2002]. Coleção Adalberto Queiroz.
Esta
última tela, a de melhor realização das que conheço com as porteiras, com
exceção da tela com tons terrosos, abandona os traços de algum modo mais
juvenis das que reproduzi. E repete praticamente todos os elementos da
anterior, mas com outra abordagem. As cores aqui se aprofundam, algo outonal ou
mesmo invernal está presente. E se nas anteriores os delineados as aproximam de
certos padrões de ilustração, nessa o resultado é diverso, precisamente porque
eles deixam de ter essa propriedade ilustrativa ao adquirir mais substância.
São contornos grossos, demarcando grandes volumes de terra ou vegetação apenas
sugeridos, talvez caulim no barranco branco, que se espalha pelo chão. Eles
intensificam com certo expressionismo as escolhas cromáticas rebaixadas desses
volumes da tela, algo melancólicas ou frias. E os movimentos sinuosos e velozes
de barrancos, matas e porteira conferem alguma intempestividade à atmosfera.
Sem título. Acrílica sobre cartão
reciclado, 45 x 35 cm. 2006. Coleção Helô Barbosa.
3.
Os quadros com os fogões de lenha
e suas cozinhas são mais radicais. As porteiras foram um recorte inteligente,
mas de um repertório dado. No caso dos fogões de lenha a operação é mais
conceitual, alegórica, imprevista. É importante notar o quanto é pequena nossa
iconografia dos pobres e envergonhados interiores de casas-grandes e outras
moradas rurais, o que talvez "justifique" sua pouca frequentação. Mais
ainda se contrastada com a grande quantidade de representações de fazendas do
país, com seus pomares, cercas e criações, em telas, aquarelas, desenhos e
gravuras.
Como
objeto imaginado capaz de atrair outros, o fogão de lenha aqui ocupa o centro para
se apresentar a moradia, a habitação, de forma despojada, às claras. Outros
cômodos da casa seriam talvez redutores: a sala de visitas com sua sociabilidade
interessada, os quartos e sua intimidade supostamente indevassável... A cozinha
é onde todos se encontram, onde as hierarquias estão mais afrouxadas, e é
incontornável.
Casas,
cozinhas e fogões são, no entanto, mais determináveis. A escolha é pela cozinha
espaçosa, com quase sempre o mesmo grande fogão de fazenda, a janela dando para
o pasto extenso, o dia ensolarado e homogêneo lá fora, os interiores em amarelo
algo melancólico, com o observador situado no cenário. Esses são os elementos
usuais.
Sem título. Acrílica sobre cartão
reciclado, 40 x 30 cm. [2002].
Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x
50 cm. 2013. Coleção Helô Barbosa.
Essa
mesma organização geral pode ser notada em outros trabalhos. O seguinte é
particularmente perspicaz com a utilização da almofada de uma porta ou janela, da
mesma natureza das que estão pintadas na própria imagem, como suporte, tornando
a "tela" tridimensional. Note-se que esse material vendo sendo usado
há muito tempo por Talarico, modo de forçar os limites entre dentro e fora e
entre duas e três dimensões. O efeito ótico é de inversão, a cozinha passa a
estar "encaixada" num cenário que apresenta o teto e as três paredes
em torno. Mas também de duplicação, porque a perspectiva pintura é diversa da e
concorre com a perspectiva sugerida pelo facetamento, desestabilizando a
posição do observador em seu interior. Outra vez, a presença de quadros nas
paredes, que aqui replicam confirmativamente o "quadro" que a janela
emoldura, e que informam sobre um padrão de uso, um ambiente cultural e um ideal
de natureza.
Sem título. Acrílica sobre almofada
de porta, 95 x 25 cm. 2010.
Na
tela seguinte, fazem-se mais presentes elementos incomuns. os candelabros com
as velas ao lado do fogão, o espelho refletindo a vela e a cadeira com braços
atrás do fogão, como se pertencessem a outro ambiente doméstico. Também a taça
causa certa surpresa, pois não é usual como são o queijo curado na beirada do
fogão, o bule e a caneca ou leiteira. Uma cozinha, então, que reúne elementos
de outros cômodos, sintetizando toda a casa que possui traços de requinte
aristocrático e frugalidade, e de novo estamos posicionados dentro dela,
olhando o fogão de perto e de cima, e parece que estamos sozinhos. Em todos os
trabalhos, a mesma ausência, nenhum ser humano, exceto o observador, com poucos
elementos que suponham alguém ter estado ali presente há pouco tempo ou que
venha novamente estar, a taça apenas. As mesas, quando há, estão bem arrumadas,
sem vestígios de uso, os fogões e espaços trazem poucos alimentos e se
encontram arrumados, em repouso e alheios a nossa curiosidade.
Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x
50 cm. 2012. Coleção Leila Bara.
O
fogão de lenha parece ser, então, uma espécie de natureza-morta, por vezes até
ladeada por arranjos florais, outras naturezas-mortas na cena, e também entra
em atividade, tornando a presença humana mais próxima.
Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x
50 cm. 2013. Coleção Cláudia Soares.
A
natureza-morta em primeiro plano, citando Van Gogh, bem como as outras em
terceiro plano, mundanas, da roça, desencantadas de seus atributos usuais de
requinte, mas revelando uma cozinha festiva ou mesmo alegre, não conseguem nos
desviar do principal, as panelas no fogão tosco, ensebado, desses cimentados e
pintados com muito pó xadrez. Mas com forno. E sempre a cadeira e a mesa, numa
cozinha espaçosa onde cabe muita gente.
Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x
50 cm. 2012. Coleção Faustino Teixeira.
Um
território amigável, com a lenha acesa, o coador de pano a postos, o céu da
paisagem incorporado ao espaço interior, nas janelas, no jarro da mesa e nela
própria, os quadros na parede aumentando a intimidade da circunstância. E o cão
se aquecendo torna tudo ainda mais hospitaleiro, convidativo.
4.
Duas séries que dialogam com as
tradições das paisagens e das representações rurais, tentando sintetizá-las a
partir de elementos aglutinadores, capazes de pôr em ação um conjunto de
referências. A reuni-las, o tom intimista, a posição contemplativa do
observador, o silêncio, a falta de movimento, a luz diurna clara e homogênea, a
linha negra do desenho definindo as regiões das cores, a presença humana por
suas obras. Nas porteiras, o sistema de posse retificado, o paraíso meio
decaído, privado e isolado. Talvez por isso mais convidativo à divagação do
olhar. Nos fogões a lenha, a sociabilidade manifesta, a cozinha como centro da
casa, lugar para o encontro e a conversa, a feitura dos alimentos e sua
partilha, do íntimo e do coletivo reunidos. Do conjunto, ao qual se agregam
outras séries do autor, sobressaem o desejo de apresentar os ambientes naturais
e rurais como possibilidades do espairecimento, de devaneio bucólico, de
convívio afável. E por meio de figuras reduzidas ao mínimo (porteira, casa,
montanha; fogão, janela, mesa), exacerbado por sua estilização de desenho.
Curiosa operação de redefinir e reposicionar os dados que pertencem a um
imaginário coletivo, a vida nas montanhas em pequenas comunidades e em estado de
isolamento, encontrando alguns elementos capazes de remeter a essa combinação particular
de relações históricas, sociais, culturais e afetos da memória. Eles se
alimentam de nossas vivências da infância, reais ou imaginárias, e propõem recortes
imaginativos das circunstâncias da vida interiorana, que correspondem às suas
melhores condições diante de um entorno ameaçador.
Ronald Polito
março de 2014