As galinhas entraram em nossas
vidas muito antes que pudéssemos imaginar. Bichos de nossa intimidade, desde
sempre na Arca, dispensam apresentações. De minha parte, creio que elas
passaram a pertencer definitivamente a meu imaginário quando eu tinha uns quinze
anos de idade e era leitor da revista Mad.
Num daqueles números antológicos, um cartum com galinhas, que suponho de Don
Martin, tornou-se para mim uma lembrança permanente ao longo da vida. Nele
podíamos ver duas enormes galinhas nas salas de um museu observando telas
clássicas, tipo Rubens ou Rafael, com um pé semierguido, a cabeça levemente
inclinada, contemplando, e bem interrogativas. Uma cena que valia por tomos e
tomos de sociologia da arte. Se não era de Don Martin, nenhum problema, mas se citei
o cartunista brilhante foi para indicar uma das influências mais importantes e
permanentes que Paulo Sérgio Talarico recebeu em sua formação, não apenas pelo
traço, como também pelo humor.
E
a galinha é um desses assuntos que parecem estar necessariamente ligados ao
cômico, ao satírico, ao ridículo, mesmo que isso não esgote suas
representações. Digo isso pensando na iconografia e em como a galinha surgiu e
se destacou. Geralmente ocupou uma posição coadjuvante em cenas rurais e
semirrurais da pintura da época moderna e novecentista. Entre outros bichos,
figurava compondo o cenário do quintal ou terreiro. Ou poderia estar pendurada ou
sobre uma mesa, morta com outras aves e caças, em outro gênero de pintura (por
exemplo, em telas de Gustave Caillebotte). Mas, aos poucos, elas passam a ser apresentadas
isoladamente, chocando ou ciscando, em pequenos bandos, ao lado de galos, sozinhas
ou com a ninhada, em miniaturas ou telas a óleo de pequenas dimensões, próprias
ao tema. Pode-se imaginar a surpresa que essas pinturas provocaram na época,
talvez semelhante à estupefação congênita das próprias galinhas, pois foi
necessário um longo percurso de deslocamento de valor do representável para que
se chegasse ao consumo das imagens de cada um dos animais. De qualquer modo, o
que temos nessas pinturas é uma tentativa de conferir certa gravidade às
galinhas, bichos domesticados captados em pouco ou nenhum movimento, com um
enquadramento e tratamento de cor e luz acadêmicos.
Uma
galinha, contudo, não tem nuances. É muito fácil saber o que é e o que não é uma
galinha. Não há como sustentar durante muito tempo uma apropriação épica ou
trágica de uma galinha. Exceto nessas espécies de memento mori que são as telas lúgubres com bichos mortos em
cozinhas, fadadas ao sucesso contemporâneo, em que a escatologia, o bizarro e o
feio estão entronizados. Ou queimando-as vivas em praça pública, como fez Cildo
Meireles em 1970.
Mas,
logo em seguida, nós podemos vê-las situadas em seu território por excelência,
que é o do cômico e suas derivações. Evidentemente, este é um investimento de
sentido nosso. As próprias galinhas não são assim ou assado (sem trocadilho).
São nossas construções do que seja o risível, o ridículo, o absurdo, o irônico,
o patético etc. que escolhem no mundo sensível aqueles elementos capazes de apresentá-las.
E as galinhas encontraram seu próprio elemento quando se viram representadas em
um sem-número de trabalhos de cartuns, das histórias em quadrinhos, das
charges, dos desenhos animados. Este é um universo, se comparado à galáxia da
pintura. O que de melhor as galinhas podem nos dar talvez seja nos fazer rir.
Essa
é a opção de Talarico, que há muito tempo se apoderou das galinhas como um de
seus temas mais recorrentes. Ele também fez diversos galos, mas aqui só vou
tratar delas. Sozinhas ou em bandos, com suas crias, em pequenos suportes
diversos como telas, almofadas de janelas e portas de demolição, pratos, cubos,
em desenhos em papel, cartão, cerâmica, em pinturas, o artista flagra o bicho
de diversas perspectivas, geralmente cômicas, mas não apenas, pois há um
lirismo delicado em suas obras.
Acrílica sobre cartão reciclado, 45 x
30 cm. 2012.
Ela
acaba de fazer seu primeiro movimento para seguir em frente, esticando o
pescoço, e para por um segundo, o que sempre parece uma falha de funcionamento,
uma isquemia cerebral intermitente. Nesse exato instante, o artista a paralisa
em sua aparente hesitação. A cabeça diminuta em relação ao corpo agigantado parece
ampliar sua ignorância sobre para onde vai, ressaltada no olho esbugalhado
mirando um ponto muito acima do observador. Uma galinha-botero. Poderosa, no
entanto, meio como uma desconjuntada ou obsoleta máquina de guerra, ela empurra
com as costas o céu e pisa firme o chão pouco animador que tenta
desestabilizá-la, apropriando-se de todo o espaço: entre o céu e a terra há uma
galinha.
Em
seus movimentos quase mecânicos, reduzidos, na pobreza de sua expressão
corporal escorregadia (talvez por isso exitosamente incorporável a
performances), com seu pé meio que esquecido erguido no ar, seu par de olhos
vitrificados e distantes, a crista como que autômata e sempre nervosa, a
galinha é a própria materialização das incontáveis dúvidas, geralmente
estúpidas, em que podemos perder grande parte de nossa existência. Ela titubeia
entre hipóteses, destinos, que supõe existirem. Ela nunca sabe para onde vai,
nunca sabe se vai, nunca sabe-se.
Lápis sobre papel. [1998]. Coleção do
autor.
Com
sua operosidade restrita, que é sempre a mesma, o afazer cotidiano de ciscar,
ciscar, ciscar horas a fio, a galinhada nos humaniza, presos ao pasto cotidiano,
quando deixamos de prestar atenção até em nós mesmos.
Acrílica sobre cartão, 100 x 80 cm.
2011. Coleção Cristina Couto Guerra.
E
com a falta de cerimônia ou ingenuidade típica de quem nunca se imagina notado,
elas se esquecem da vida apontando com garbo seus rabos para o alto, a galinha
branca com pernas deselegantemente bem abertas, no centro do quadro, para você
que a está vendo. Esse centro onde se encontra a maior parte do alimento e que
está coberto por seu corpo, cujo centro é seu rabo... O trabalho, portanto, não
é sutil, mas pode passar despercebido. Como o pescoço pelado roxo da galinha com
crista bem vermelha em primeiro plano. E tão senhoras, grandes galinhas
poedeiras criadas soltas.
Acrílica sobre cartão reciclado, 35 x
25 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.
Esta
galinha d’angola, tão
satisfeita de si, para e posa lateralmente para ser flagrada, certa de sua
beleza exótica, a distinção de suas penas nesse lado do Atlântico. Seu olho e
bico produzem um sorriso ambíguo como o de Mona Lisa?
Acrílica e tinta de parede sobre cartão
reciclado, 40 x 30 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.
Essas
três nos conduzem a um lugar mais conhecido. Estamos com certeza em um terreno
humano, já que estamos falando de galinhas. Que são muito falantes. A imagem é
do tipo que nos leva a um sorriso à socapa. A vermelha, tão convencida de si,
alteada, apenas acabou seu comentário com ares de ingenuidade, mas falsa porque
é má atriz, sendo claramente questionada pela galinha do centro, que, por uma
leve confusão ótica provocada por seu rabo, parece por um instante estar com a
mão na cintura. A observação dela parece contundente, que dispensaria qualquer
comentário a mais. Mas há: o golpe de misericórdia é dado pela galinha do
fundo, que passa ao largo e sibilinamente acrescenta outra observação crítica.
Galinhas
têm mil e uma utilidades. Por exemplo: esta definitivamente humanizada como gorda
galinha-sarney dos ovos de ouro, com o grande ovo do Congresso partido ao meio,
oferecido. A cabeça ovo parece insistir no poder da reprodutibilidade dos ovos,
calma e diligentemente chocados com bastante brilho, que recobre inclusive suas
penas e rabo, mesmo sob um céu não muito amistoso. E, à diferença da fábula,
essa galinha não tem dono.
Desenho e Photoshop. Charge no Jornal do Sol (Porto Seguro, 2004).
Esta chester um pouquinho acima
do peso, poedeira, apresenta ao público curiosíssimo seu ovo-troféu, motivo de
todo o orgulho de sua pose e fisionomia
Sem título. Desenho. [2000]. Coleção
do autor.
As
galinhas também têm sido exploradas em outros suportes, como dito. Um deles é a
cerâmica, no caso, o haku. No gênero da pintura de pratos, Talarico optou por utilizar
esse prato “disforme”, “oriental”, de pequenas dimensões e espessura, no qual
grava seus desenhos que depois são queimados. A forma inusual combina com a
temática um tanto inesperada: uma galinha passeando com suas crias, vigilante.
Sem título. Haku, 18 x 12 cm. 2013.
Coleção Ricardo Salomão.
Outra
experiência com desenho sobre cerâmica são esses cones também em raku. No menor, destacamos essa franga
de peito estufado, crista ao alto, que parece rir. No maior, o pintinho ciscando/treinando,
protegido entre duas galinhas.
Sem título. Haku, 10,5 cm x 4 cm/d; 14,5 cm x 4,5
cm/d. 2013. Coleção particular.
Mas
o trabalho mais surpreendente com o tema das galinhas é um pequeno cubo de
madeira com suas facetas pintadas, recentemente realizado. Ele, de certo modo,
pertence a uma série de cubos e pequenos mourões de madeira que há anos são
transformados em prédios ou casas por Talarico, explorando a
tridimensionalidade do suporte e em diálogo com obras de cerâmica mais típicas
desse tipo de representação. Mas nos casos das peças de madeira a similitude é
alta entre a forma geométrica e as moradias. Não é o que ocorre com o cubo que
passo a observar, pois ele se organiza em outros termos.
Sem título. Acrílica sobre madeira, 7
x 7 x7 cm. 2014. Coleção particular.
A
imagem quase reproduz o tamanho original, um cubo com cerca de sete centímetros
em cada aresta. Nele Talarico pintou com acrílica a mesma galinha vista por
quatro lados e de cima. O cubo é um pedaço de madeira usado, velho, difícil
imaginar sua anterior serventia. Mas as marcas de prego não deixam muita dúvida
de que teve algum emprego.
Estamos
diante de uma pintura, mas que é também “escultura”. E que não tem frente e
verso previsíveis, já que a imagem da galinha de frente não está na posição
diametralmente oposta à imagem dela de costas. Ou seja, a observação do objeto
pode ser iniciada em qualquer faceta, pois não há um início e um fim previstos.
Sem saída ou entrada, leio-a em certa ordem, “dramatizando-a”.
Pega
de surpresa, ela levanta as asas como se respondesse ao comando de “mãos ao
alto”, ao mesmo tempo que mantém as pernas abertas e paralelas enquanto é
alvejada por dois poderosos disparos, um que atinge levemente seu ombro
esquerdo, outro em baixo da asa esquerda, nenhum dos dois letal. Mais que
assustada, sua cara denota perplexidade diante do que está acontecendo.
Ao
se virar tentando escapar pé ante pé, tem de enfrentar uma situação sísmica que
ameaça fraturá-la. Mas não há mesmo saída. Tentando escapar de foram
atrapalhada, vira-se integralmente, dá uma volta de 180 graus, o que é seu primeiro
erro fatal.
É
atingida por quatro balaços de espingarda, do tamanho de seu olho, e um passa
por cima. Dois tiros são mortais, os outros do rabo ainda lhe permitiriam
sobreviver. Numa última tentativa de escape ela se volta de costas, o que é seu
segundo e último grande erro e sua pior ideia...
O
disparo derradeiro, as pernas agora um pouco abertas, ela vai arriar, mas se
vira ainda para ver a queda e seu alvejador. E diferentemente dos buracos reais
das outras facetas do cubo, este buraco negro como que com respingos de sangue
em volta foi pintado. O autor assina a morte e põe um ponto final.
A
coda é a parte de cima do cubo.
Quando
nosso olhar fura a tela d’água, mergulha no cubo e descobrimos sua quarta
dimensão. A madeira serrada de forma tosca é um mar de ondas provocadas pelo
deslocamento do corpo da galinha inesperadamente aquática e submersa, muito
focada, como sempre indo sem que saibamos para onde, como uma lontra, ou um
caramujo. Existe outra vida, tudo está salvo.
Há
um erotismo provocativo, debochado, nesses rabos levantados, nessas partes
pudendas tão à mostra. Que até brinca com a pornografia e a escatologia. E não
poderia ser de outro modo, afinal estamos falando de galinhas. E há a
contraface disso tudo, o cuidado, o carinho com a cria, e o cotidiano atarefado
com encher a barriga. Tudo muito básico, bem próximo da experiência humana
diária.
Ronald Polito
março de 2014